09 março 2011

calçadas, azinhagas & duelos


Irreconhecível, essa infame Calçada hoje cheia de trânsito em qualquer dos sentidos e a todas horas que tanto bifurca para Oeste como para Este e Sul como desagua quase no centro da capital; é essa: a Calçada de Carriche. Na foto da direita, desanuviada, provavelmente a camioneta de carreira de que se vislumbra a traseira seria uma da empresa de camionagem 'Bucelense'. Talvez. Muito campo ainda. Mas isso era em 1938.
A imagem da esquerda, na Azinhaga da Ameixoeira, retrata um duelo entre oficiais da Armada em 1914, que começou assim:

"Em 1914, quatro anos após o início da República, a situação da Marinha era já aquilo a que se veio a chamar o “Zero Naval” : os poucos navios que havia tinham escasso ou nulo valor militar e, na sua maioria, eram velhos. A Marinha esforçava-se por conseguir uma melhoria da esquadra, de modo a poder cumprir as suas obrigações com dignidade, e recorria à imprensa para elucidar a opinião pública acerca do que se passava.

- O “Século” publicava, regularmente, artigos do Comandante Leote do Rego, oficial de grande prestígio, que debatia o tema de um modo frontal, fundamentando corajosamente os seus pontos de vista e pondo em causa as opções da Comissão Parlamentar da Marinha junto da Câmara dos Deputados – comissão essa constituída também por oficiais da Armada, que fora incumbida de estudar o assunto. Dela fazia parte o capitão-de-fragata Álvaro Nunes Ribeiro, também ele um oficial muito distinto e respeitado na Armada.

- Dum modo grosseiro e muito resumido, pode dizer-se que Leote do Rego era a favor da construção dos navios no Arsenal de Marinha de Lisboa, enquanto a Comissão se inclinava para a sua compra em Inglaterra. Mas esta discordância depressa deu lugar a um conflito cujos argumentos nada tinham de técnico, como se pode ver pelo texto da intervenção de Nunes Ribeiro na Câmara de Deputados em 20 de Abril de 1914, de que se transcrevem alguns passos mais significativos para a compreensão da “causa proxima” do duelo:

- O Sr. Nunes Ribeiro (em negócio urgente): Agradece à Câmara ter-lhe acei-tado a urgência, e chama a atenção do Sr. Ministro da Marinha para afirmações feitas em um jornal a respeito do parecer duma comissão técnica, composta de ofi-ciais da Armada, que há um ano a esta parte tem sido vivamente picada por um despeitado de não ter sido nomeado para essa comissão. No Século de sábado último, em sequência doutros artigos, diz-se que essa comis-são aprovou o material duma determinada casa, quando o preço da não preferida era inferior… Dum lado está uma comissão, cujos membros tem trabalhado com a maior boa vontade e a mais inteira honorabilidade, gastando quatro meses na avaliação das propostas apresentadas. Do lado contrário há um despeitado que queria fazer parte dessa comissão, por ter pedido comando de navios, que lhe não deram, e que no tempo da monarquia expionava os camaradas republicanos.

- O Sr. Ministro da Marinha (Augusto Neuparth): – Ouvi com toda a atenção o que acaba de expor o Sr. Deputado Nunes Ribeiro, e tenho a dizer a S. Ex.a que li o artigo publicado no jornal a que S. Ex.a se referiu. Realmente não me deixou ele a impressão desagradável que S. Ex.ª lhe encontrou. Se bem me recordo, o artigo publicado por esse oficial da Armada visava apenas provar que as construções feitas no nosso arsenal ficavam muito mais baratas do que feitas em casas estrangeiras, e para isso apresentava dois preços: um duma casa e outro doutra.

- Sr. Nunes Ribeiro: V. Ex’ª compreende que o Século é lido por cem mil pessoas, mas só trezentos oficiais de Marinha é que o compram.

- Orador: Li o artigo a que o ilustre Deputado se referiu, e devo repetir a S. Ex.a que nele não encontrei qualquer insinuação à comissão, porque ele apenas citava o nome de duas casas e provava que as construções no nosso arsenal ficavam mais baratas do que feitas em qualquer casa do estrangeiro.

- Sr. Nunes Ribeiro; Não apontei só esse artigo. Noutro artigo, já foi dito que essa comissão procedia daquela maneira com mira nas rendosas comissões… e comissões no estrangeiro. - Leote do Rego considerou-se ofendido pelas palavras de Nunes Ribeiro, e de imediato o desafiou para um duelo – que, nessa época, embora formalmente proibido, era tacitamente aceite e frequentemente praticado. Dada a qualidade de militares de ambos os contendores, a arma de combate escolhida foi o sabre. O Século de 2 de Maio, sob o título “O Duelo de Hontem”, descreve o que se passou, e transcreve as “Atas da Pendência”, de que foi Juiz de Campo o snr. Professor Carlos Gonçalves.

- Ambos os contendores saíram feridos do duelo, que durou cerca de três minutos. Vieram mais tarde a reconciliar-se, num jantar presidido por Norton de Matos."
- in Revista da Armada

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